Apresentação
Temos o prazer de oferecer ao público um conjunto de 51 curtas e longas metragens de animação que marcaram a história do cinema brasileiro, tanto pela originalidade na abordagem de temas, como pela inventividade no uso das mais diversas técnicas. Também integram a programação uma oficina de animação ministrada por Maurício Squarisi – um dos fundadores do Núcleo de Animação de Campinas -, e um debate sobre a obra do artista e animador baiano Chico Liberato, grande homenageado da Mostra.
Um olhar retrospectivo implica, necessariamente, na valorização de um olhar histórico. Não a história como um fundamento imutável, e sim no princípio de que toda história é um processo, é uma invenção, é fruto de desejos e forças que se compõem e recompõem fazendo emergir acontecimentos. Nesse sentido, ao propormos um recorte de filmes, estamos acreditando que outros recortes possam surgir e novas histórias possam ser descobertas. Valorizar o que temos é trazer à tona aquilo que foi criado, apesar da indústria massiva americana e de governos que operaram silenciando, torturando e paralisando as expressões de um povo.
Um olhar retrospectivo propõe encontros. Os pioneiros estavam lá e estão por aqui. Nomes como Luis Seel, Anélio Latini e Ippe “Ypê” Nakashima, verdadeiros artesãos que dominaram a técnica manual da animação com paciência e insistência, terão alguns de seus trabalhos exibidos na Mostra. A esses desbravadores, descendentes de migrantes europeus e japoneses – daqueles que atravessaram guerras, mares e desertos, deixando tudo para trás -, concedemos toda a nossa admiração e orgulho.
Já Roberto Miller, pioneiro do cinema experimental, influenciou toda uma geração nas décadas de 60 e 70 (Antonio Moreno, Stil, José Rubens Siqueira[1]) a partir das suas experimentações com desenhos na própria película. Seus filmes obtiveram prestígio internacional e abriram as portas para esse tipo de investigação estética um tanto psicodélica. Roberto faleceu em 2013 e, infelizmente, a produção da Mostra não conseguiu contato com o seu herdeiro para autorizar a exibição das animações. Mas o público poderá ter acesso a alguns de seus trabalhos disponíveis na internet, como O átomo brincalhão e Desenho abstrato No 2, através do link: vimeo.com/124096117. Vale muito!
Nas décadas seguintes, é pela via do humor ácido e “porno-debochado” que a animação brasileira se prolifera e contagia o público. Um grupo diverso de animadores vai enveredar por esse caminho e produzir filmes como Rocky e Hudson, de Otto Guerra, maravilhoso marco homossexual que conta a história de um casal de caubóis gays. Ainda pela trilha do sarcasmo, César Cabral, Allan Sieber, Ennio Torresan, Rodrigo John, Fernando Miller e Marão vão abusar do teor sexual e debochado para contar histórias de personagens por vezes frustrados, trapalhões ou amorais que desafiam todos os limites do “bom senso”.
Mas a animação nacional também produz territórios mitológicos, sutis e fabulosos. Nos filmes Òrun Aiyé – a criação do mundo, Dia estrelado e Guida, todos de diretoras mulheres, podemos notar a delicadeza dos traços leves e fluidos em Guida; e uma composição rica em detalhes perceptíveis nos cenários, figurinos e objetos dos filmes Dia Estrelado e Òrun Àiyé. São narrativas que exploram os embates dos personagens em seus mundos, que se reinventam seja a partir de uma afirmação de si em um novo contexto social, seja através da precariedade e da fome, seja pelo exercício de forças sobrenaturais.
Teremos, ainda, o prazer de exibir o documentário Luz, anima, ação, cuja importância é fundamental para a compreensão do percurso da animação brasileira e por nos possibilitar conhecer melhor os animadores que atuam para o desenvolvimento da área. O filme realizou entrevistas com diversos profissionais, entre eles Marcos Magalhães, Aída Marques e Cesar Coelho, fundadores no Festival Anima Mundi, um dos maiores responsáveis por impulsionar o gênero no país. Aproveitando o gancho, exibiremos também Noturno, de Aída Marques, além de Meow! e Animando, de Marcos Magalhães.
Graças à realização da Mostra, os filmes Pedido-Pax, de Chico Liberato, Muçagambira, de Alba Liberato, Festa da Mocidade e Natal e Magarojipinho, ambos realizados em parceria entre Chico Liberato, Maurício Squarisi e Wilson Lazaretti a partir de oficinas de animação com crianças, contam agora com suas primeiras cópias digitalizadas para que a difusão ao público seja ainda maior. A recuperação desses títulos nos permitiu promover a maior retrospectiva já realizada da obra de Chico Liberato, contando com um total de 12 filmes, entre curtas e longas metragens. Mergulhar em sua obra é se deparar com um estilo único, permeado por temas populares, personagens míticos e histórias que alternam sobriedade e alegria com um rigor absoluto dos traços. A homenagem a Chico será composta também por uma mesa de debates, com a participação do animador baiano, para que possamos traçar novos olhares sobre a sua obra e expandir o pensamento de seu fazer artístico.
Enfim, a Mostra Retrospectiva de Cinema de Animação Brasileiro conta com uma programação diversa para várias faixas etárias. Ao longo de uma semana, propomos uma imersão no universo da animação e esperamos com isso que as pessoas possam, não apenas conhecer os filmes, mas saírem remexidos por eles.
Desejamos a todas e todos uma ótima sessão!
Isabel Veiga
Curadora e coordenadora geral
[1] Por ocasião da Mostra, foi produzida uma nova cópia em 35mm e digital do curta Emprise, de José Rubens Siqueira, cujos negativos de som e imagem foram encontrados no MAM-RJ e disponibilizados por Hernani Heffner.